A inquietação começara, ainda o mês de Janeiro ía a meio. A senhora Rosa, da casa ao lado, que era menina na verdade, pois nunca casara, nem enjeitara namoro com ninguém, mas que toda a gente chamava de senhora à mesma, fazia questão de manter presente essa lembrança, na passagem morosa daqueles dias, que, Deus meu, tanto me custaram a passar.
Fazia-o indolentemente, com um menear preguiçoso das ancas, uma espécie de samba automático, que o meu pai dizia que ela aprendera com a Carmen Miranda, e fazia-o, sem me deitar olho propriamente, pois só lhe via a parte de trás da cabeça a mexer do outro lado, mais nada. Um cocuruto hermético, trancado num puxo grisalho, que se agitava num quase desprendimento, enquanto deitava a roupa a corar no estendal alcantilado entre o muro que dividia as duas casas. De tantos nervos me remoía, por essas alturas, que nem sequer lhe imaginava com algum grau concreto de exactidão, o ritmo do resto do corpo: - Já só faltam quinze dias Zezinho! - queimava-me ela a paciência com a voz. E no dia seguinte, a mesma coisa, subtraindo-lhe um dia, e por ali fora, até ao dia em questão. Juro que ela fazia de propósito, mas, não lhe tomava a mal. E mais tarde, percebi porquê.
Aquele tempo incerto, parecia subitamente mais longo, solto pelos dias como um elástico imenso que tudo levava de arrasto. E nem a voz carinhosa da senhora Rosa, nem os apupos dos meus irmãos, nem os olhos labirínticos da minha mãe, que eu tanto amava, me convenciam da verdade real daqueles dias. O tempo brincava com a minha pele, brincava com o meu juízo, com a minha inocência de criança, e levava o dia dos meus anos para longe, sempre para mais longe, todos os dias. - Já só faltam três dias Zezinho! - Soprava-me aquela voz do lado de além, e o consolo dos legos não me bastava para construir a esperança de que o dia chegaria enfim.
Foi então, a três dias da data final, que a ansiedade se virou contra mim, e passou a terror. Puro terror, garanto-vos. Aquele pânico inexplicável que só uma criança de nove anos parece entender. Mais ninguém o entendeu quando lhes tentei explicar. Nem o meu pai, nem a minha mãe, nem os próprios amigos, que aliás, mesmo sendo da minha idade, porém mais novos, um pouco mais novos, se desmanchavam com o meu terror, ainda seguros da idade que tinham, e sem quererem perceber o que para mim se tornava iminente. Ninguém me compreendia, ninguém. Vivi aqueles três dias num terror solitário. Bem, minto. Havia alguém sim que me entendia, a senhora Rosa.
Transido de medo, vasculhava a minha alma e todos os recantos mais manhosos daquela casa, na busca incessante por um esconderijo seguro, pois sabia que este seria o ano. O medo empurrava-me de volta para o passado, mas, o tempo e a voz da senhora Rosa não deixavam as horas pararem. Este seria o ano, sim. O ano terrível. Pois interiormente convencera-me de que este ano ficaria velho, ao galgar a barreira dos dois dígitos, este ano seria o fim da minha infância. Dez anos! - Haverá data mais temível? - É já amanhã Zezinho! - De novo me chegava a sentença, engrossada pelo aroma do sabão de alfazema que os lençóis deitavam ao vento. - Amanhã! - Engoli em seco, e pensei que iria morrer dali a algumas poucas horas. Juro que ela não me queria mal algum, mas, porquê que não parava de dizer aquilo todos os dias?
No dealbar do dia fatídico, o meu pai abordou-me a despropósito, ou quanto muito, quis dar a entender que assim era. Senti-lhe um travo de desespero na voz, o desespero do esquecimento. - Já pensaste no que queres receber amanhã? - Já! - Respondi-lhe com determinação aguerrida. - Ai sim? E então? - Não quero prendas pai, não quero soprar velas nem fazer desejos, não quero fazer anos! - espiguei a resposta quase a despontar num pranto de lágrimas. - Outra vez isso? - Insistia ele já um pouco agastado. - Por favor pai, não me deixes fazer anos amanhã, vou ficar velho, como tu. Não quero.
A minha mãe veio em seu socorro, pois parecia que as duas veias paralelas que lhe adornavam a testa se expandiam num desastre explosivo anunciado. - O que é isso de não quereres fazer anos? Todas as crianças gostam de fazer anos. Comem bolo, brincam com os amigos, toda a gente lhes dá toda a atenção nesse dia, e sabes, vais receber prendas, não sabes disso? - explicava-me ela com aquele esmero atencioso de mãe. - Mas eu não quero! Não quero, pronto!
E antes que este derradeiro dia findasse, formara-se um campo de batalha na minha casa. Recusei comer o lanche, e, há noitinha, profanei a tradição, e não atendi ao chamamento para o jantar. Entrei em guerra com todos, todos os que me queriam obrigar a ser velho, e procurei abrigo seguro no recôncavo que jazia por baixo das escadas, entre as canas de pesca, as ferramentas, os sacos de batatas e a tenda de campismo. Infrutífero porém, pois não demorou muito até que os meus irmãos ali dessem comigo, acabrunhado numa nuvem de raiva incontida. - Estás a candidatar-te a uma valente sova. - Retorquiu o meu irmão mais velho, enquanto que o outro, subia já as escadas para dar conta de mim aos meus pais.
Não sei bem como o consegui, mas tive a presença de espírito para lhe responder à letra, mesmo antes - ou talvez por isso mesmo - de lhe escapar sorrateiro das mãos. - Se queres ser velho, isso é lá contigo. Este, não é nenhum dia de anos qualquer, e desta vez eu não faço anos, não faço e pronto! - E fugi pelas escadas acima como um foguete telecomandado. Passei pelo meu outro irmão, que inexplicavelmente ainda não chegara à cozinha, passei pela minha mãe, de avental posto e colher de pau em riste, pelo meu pai, já sentado à mesa com aquele ar que sem falar tudo dizia, passei por todos e senti-os demasiado lentos, como se o tempo tivesse abrandado de facto, colocando-os em câmara lenta e não me tocasse de todo.
Não quis deter-me em maiores considerações sobre o tempo, e avancei somente, progredi em frente, passando a cozinha através da porta do quintal, para o ar limpo e frio da noite. Estaquei por breves instantes, antes que o tempo fizesse fé que eu ali estava e me apanhasse, ponderei todas a hipóteses, muito rapidamente e subi os dois lanços de escadas até ao terraço comum, por cima da nossa casa e da senhora Rosa. Já mal divisava coisa com coisa, e no desvario do meu desespero, decidi esconder-me, de todos os sítios, vejam lá - no telhado!
No delicado equilíbrio que intentava fazer, sobre a superfície das telhas, molhadas e escorregadias pela geada da noite, cheguei a pontos de acreditar que o tempo não me encontraria ali, por ser de noite, pensei, e porque estava no exterior, fora da casa. Talvez o tempo fosse como o pai natal, e só nos encontra naquele lugar específico onde nos procura. Ali estaria a salvo, estava seguro disso. Ainda se ao menos os outros permanecessem paralisados por mais algumas horas, só as suficientes para eu conseguir fintar o dia dos meus anos.
- Que fazes tu aí plantado Zezinho? - Sussurrava-me uma voz cálida vinda das sombras. Reconheci-a de prontidão. Era a senhora Rosa. - Já só faltam algumas horas, não é? - Oh, mas eu não quero fazer anos desta vez senhora Rosa, este ano não. Vou ficar velho, e morrer logo a seguir...nem pensar, não quero e pronto!
- Não digas isso, que tolice! Sabes porquê que conto todos os dias o tempo que falta para fazeres anos? - Não! Mas quem me dera que não o tivesse feito este ano. - Ela sorriu. Pude ver-lhe claramente o brilho radiante daquele seu sorriso. - Tu sabes que eu sou sozinha não sabes? - Assenti que sim com a cabeça. - E sabes também que não tenho filhos... - O seu semblante perdeu subitamente aquele brilho anterior, e deixou descair a cabeça numa tristeza profunda - Não calhou, suponho. - Continuou. - algumas pessoas não encontram os seus pares a tempo, e depois, já não conseguem construir família, casar, ter filhos, ou mesmo, celebrar aniversários com prazer.. - Os seus olhos abraçavam-me naquele momento, com o mesmo carinho que sempre sentia quando me deitava no colo da minha mãe. - Era a mim mesma que todos os dias lembrava dos teus anos, não a ti. Sabes bem que todos os anos, os teus pais me convidam para as vossas festas, e as tuas Zezinho, as tuas, sempre foram aquelas que mais prazer me davam assistir, todas elas, nestes últimos nove anos. O dia do teu aniversário, para mim, não é nenhum dia de anos qualquer, é o dia mais importante do ano inteiro. E ano após ano, mal posso esperar que ele chegue, sabes? - Chegou-se a mim e abraçou-me a sério, depois deu-me um beijo na testa, desejou-me até amanhã, e voltou para casa. Levou consigo todos os meus temores infundados, e o tempo retomou o seu rumo normal.
A minha mãe veio em seu socorro, pois parecia que as duas veias paralelas que lhe adornavam a testa se expandiam num desastre explosivo anunciado. - O que é isso de não quereres fazer anos? Todas as crianças gostam de fazer anos. Comem bolo, brincam com os amigos, toda a gente lhes dá toda a atenção nesse dia, e sabes, vais receber prendas, não sabes disso? - explicava-me ela com aquele esmero atencioso de mãe. - Mas eu não quero! Não quero, pronto!
E antes que este derradeiro dia findasse, formara-se um campo de batalha na minha casa. Recusei comer o lanche, e, há noitinha, profanei a tradição, e não atendi ao chamamento para o jantar. Entrei em guerra com todos, todos os que me queriam obrigar a ser velho, e procurei abrigo seguro no recôncavo que jazia por baixo das escadas, entre as canas de pesca, as ferramentas, os sacos de batatas e a tenda de campismo. Infrutífero porém, pois não demorou muito até que os meus irmãos ali dessem comigo, acabrunhado numa nuvem de raiva incontida. - Estás a candidatar-te a uma valente sova. - Retorquiu o meu irmão mais velho, enquanto que o outro, subia já as escadas para dar conta de mim aos meus pais.
Não sei bem como o consegui, mas tive a presença de espírito para lhe responder à letra, mesmo antes - ou talvez por isso mesmo - de lhe escapar sorrateiro das mãos. - Se queres ser velho, isso é lá contigo. Este, não é nenhum dia de anos qualquer, e desta vez eu não faço anos, não faço e pronto! - E fugi pelas escadas acima como um foguete telecomandado. Passei pelo meu outro irmão, que inexplicavelmente ainda não chegara à cozinha, passei pela minha mãe, de avental posto e colher de pau em riste, pelo meu pai, já sentado à mesa com aquele ar que sem falar tudo dizia, passei por todos e senti-os demasiado lentos, como se o tempo tivesse abrandado de facto, colocando-os em câmara lenta e não me tocasse de todo.
Não quis deter-me em maiores considerações sobre o tempo, e avancei somente, progredi em frente, passando a cozinha através da porta do quintal, para o ar limpo e frio da noite. Estaquei por breves instantes, antes que o tempo fizesse fé que eu ali estava e me apanhasse, ponderei todas a hipóteses, muito rapidamente e subi os dois lanços de escadas até ao terraço comum, por cima da nossa casa e da senhora Rosa. Já mal divisava coisa com coisa, e no desvario do meu desespero, decidi esconder-me, de todos os sítios, vejam lá - no telhado!
No delicado equilíbrio que intentava fazer, sobre a superfície das telhas, molhadas e escorregadias pela geada da noite, cheguei a pontos de acreditar que o tempo não me encontraria ali, por ser de noite, pensei, e porque estava no exterior, fora da casa. Talvez o tempo fosse como o pai natal, e só nos encontra naquele lugar específico onde nos procura. Ali estaria a salvo, estava seguro disso. Ainda se ao menos os outros permanecessem paralisados por mais algumas horas, só as suficientes para eu conseguir fintar o dia dos meus anos.
- Que fazes tu aí plantado Zezinho? - Sussurrava-me uma voz cálida vinda das sombras. Reconheci-a de prontidão. Era a senhora Rosa. - Já só faltam algumas horas, não é? - Oh, mas eu não quero fazer anos desta vez senhora Rosa, este ano não. Vou ficar velho, e morrer logo a seguir...nem pensar, não quero e pronto!
- Não digas isso, que tolice! Sabes porquê que conto todos os dias o tempo que falta para fazeres anos? - Não! Mas quem me dera que não o tivesse feito este ano. - Ela sorriu. Pude ver-lhe claramente o brilho radiante daquele seu sorriso. - Tu sabes que eu sou sozinha não sabes? - Assenti que sim com a cabeça. - E sabes também que não tenho filhos... - O seu semblante perdeu subitamente aquele brilho anterior, e deixou descair a cabeça numa tristeza profunda - Não calhou, suponho. - Continuou. - algumas pessoas não encontram os seus pares a tempo, e depois, já não conseguem construir família, casar, ter filhos, ou mesmo, celebrar aniversários com prazer.. - Os seus olhos abraçavam-me naquele momento, com o mesmo carinho que sempre sentia quando me deitava no colo da minha mãe. - Era a mim mesma que todos os dias lembrava dos teus anos, não a ti. Sabes bem que todos os anos, os teus pais me convidam para as vossas festas, e as tuas Zezinho, as tuas, sempre foram aquelas que mais prazer me davam assistir, todas elas, nestes últimos nove anos. O dia do teu aniversário, para mim, não é nenhum dia de anos qualquer, é o dia mais importante do ano inteiro. E ano após ano, mal posso esperar que ele chegue, sabes? - Chegou-se a mim e abraçou-me a sério, depois deu-me um beijo na testa, desejou-me até amanhã, e voltou para casa. Levou consigo todos os meus temores infundados, e o tempo retomou o seu rumo normal.
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